Campeã de infecções, bactéria multirresistente é detectada agora fora de hospitais no Brasil

Sandro Azevedo | 3404 Visualizações | 2019-09-05T18:18:59-03:00
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A bactéria Klebsiella pneumoniae é figura conhecida em listas nacionais e internacionais dos microrganismos mais perigosos por sua resistência a antibióticos e consequente capacidade de causar infecções hospitalares.

Ela foi colocada em 2017 na categoria "crítica", a mais preocupante, em uma lista da Organização Mundial da Saúde (OMS) das bactérias contra as quais o desenvolvimento de novos remédios é mais urgente, já que esses microrganismos evoluíram se tornando mais fortes e desenvolvendo formas poderosas de driblar antibióticos existentes.

No Brasil, foi ela também o microrganismo que mais causou infecções sanguíneas em pacientes adultos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) em hospitais públicos e privados, segundo dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para 2017.

Agora, cientistas brasileiros descobriram algo que já temiam: detectaram a presença da Klebsiella pneumoniae em organismos de pacientes que não estão hospitalizados, e sim na "comunidade", como definem os especialistas. No caso, esta bactéria foi encontrada na urina de 48 pessoas diagnosticadas com infecção urinária em 2013 e que foram fazer testes em uma rede de laboratórios particular na região de Ribeirão Preto (SP).

Especialistas consultados pela BBC News Brasil indicam que esse é o primeiro estudo a identificar a bactéria em amostras de pacientes brasileiros não hospitalizados.

O que causa preocupação nestes resultados, publicados no periódico Journal of Global Antimicrobial Resistance, não é apenas a identificação da Klebsiella pneumoniae na urina destas pessoas, mas a comprovação de que estes microrganismos se mostraram também muito resistentes.

Das 48 amostras, 29 (60,4%) tinham bactérias não suscetíveis a três ou mais classes de antibióticos - portanto, consideradas multirresistentes (MDR). No conjunto, foram encontrados também diferentes "genes de virulência", ou seja, codificadores genéticos que geram "armas" para que as bactérias consigam driblar o sistema de defesa dos pacientes ou se espalhar facilmente.

"O que nos surpreendeu foram esses altos índices de resistência a antibióticos e genes de resistência e virulência", explicou à BBC News Brasil por e-mail André Pitondo da Silva, coautor da publicação e professor de Microbiologia e Pesquisador da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp).

Para ele, o quadro não deve estar restrito à região de Ribeirão Preto, porém é preciso mais estudos para avaliar esse ponto.

"Mas é importante ficar claro que não se trata de uma epidemia ou de algo que se alastre por contágio direto. O alerta maior é que é preciso controle na saída de pacientes infectados dos hospitais e que não haja uso indiscriminado antibióticos."

Uma bactéria oportunista

A Klebsiella pneumoniae pode viver na flora intestinal de uma pessoa por anos e nunca causar problemas. Mas ela é oportunista: diante de alguma fragilidade, como queda na imunidade, doenças, ou mesmo do envelhecimento, ela age e pode causar feridas; infecções pulmonares; infecções urinárias que podem se agravar como uma pielonefrite (infecção nos rins); pneumonia; e até sepse (infecção generalizada), com risco de morte.

Infecções causadas por ela são mais comuns em hospitais do que fora deles. Nas unidades de saúde, sua propagação acontece principalmente no contato com fluidos do paciente infectado, como por meio de sondas e cateteres.

Na literatura científica mundial, a resistência desta bactéria a antibióticos tem sido associada a uma crescente morbidade e mortalidade.

Um tipo da Klebsiella pneumoniae, a KPC - sigla para Klebsiella pneumoniae produtora de carbapenemase - ficou popularmente conhecida como uma "superbactéria" justamente por produzir uma enzima capaz de combater os medicamentos mais potentes para tratar de infecções graves, com destaque para os chamados carbapenêmicos. Algumas bactérias produtoras de KPC foram encontradas nas amostras de Ribeirão Preto.

Também foram detectadas no estudo, apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), sete amostras com perfil genético compatível ao chamado complexo clonal 258 (CC258), comumente associado a infecções hospitalares e com grande capacidade de se alastrar.

Os cientistas fizeram ainda exames nas 48 amostras para descobrir a que antibióticos esses microrganismos reagem. Destacou-se a resistência a trimetoprima (em 100% das amostras); sulfonamidas (97,9%); ácido nalidíxíco (89,6%); nitrofurantoína (83,3%); e trimetoprima (54,2%).

Pitondo destaca que conhecer a quais antibióticos as bactérias são mais ou menos suscetíveis é essencial para controlar infecções e tratá-las corretamente, evitando por exemplo que um medicamento inadequado acabe por selecionar os microrganismos mais resistentes e, assim, piore o quadro de saúde do paciente.

Ana Paula Assef, pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), que estuda a resistência a antimicrobianos mas não fez parte da equipe que publicou no Journal of Global Antimicrobial Resistance, classificou o resultado do estudo como "preocupante".

"Essas bactérias encontradas (no artigo), produtoras de KPC, quando se mostram resistentes aos carbapenêmicos, são resistentes a praticamente todos os antibióticos. Na verdade, temos voltado a usar as polimixinas, mas elas são a última opção de tratamento", explica Assef, indicando também que às vezes recorre-se a uma combinação de antibióticos para driblar microrganismos resistentes, mas esta é uma solução "parcial".

"É muito grave constatar infecções urinárias em indivíduos saudáveis que poderiam ser tratados em casa. Um indivíduo com uma bactéria desse tipo já não pode ser tratado com antibiótico comprado na farmácia, precisa ir para o hospital. E (a situação) vai ficando cada vez pior", explicou por telefone à BBC News Brasil.

"Já há um tempo, toda a comunidade científica se preocupava que isso fosse acontecer. Outros estudos, inclusive nossos, já haviam detectado a KPC no ambiente, como nos rios e no mar. Então a hipótese era: se essas bactérias estão saindo do hospital e indo para o ambiente, será que elas vão causar infecções em pacientes saudáveis na comunidade? O que este artigo está dizendo é que provavelmente se trata disso".

Lacunas na pesquisa

Há algumas lacunas no estudo do caso de Ribeirão Preto que seus próprios autores reconhecem na publicação.

Uma delas é o histórico de saúde dos 48 pacientes cujas amostras foram analisadas, já que não havia prontuários médicos disponíveis. Assim, não há como saber o quão frequente ou recente foi a presença destas pessoas em hospitais, mas a hipótese dos autores é justamente que os pacientes já tenham sido hospitalizados no passado e, durante a internação, foram colonizados pelas bactérias.

"Só tivemos acesso às bactérias isoladas dos pacientes e a alguns dados, como idade, sexo etc. Contudo, não sabemos se esses pacientes já foram internados em hospitais, se tiveram infecções prévias ou, até mesmo, se eles têm infecções urinárias recorrentes, fazendo uso constante de antibióticos", diz Pitondo. Não há informações também sobre a evolução do quadro de saúde desses 48 pacientes.

"Mas um fato é indiscutível: essas bactérias multirresistentes estão causando infecções urinárias em pacientes que estão fora do ambiente hospitalar e isso é realmente preocupante".

Quanto à data das amostras, 2013, o pesquisador diz acreditar que, se fosse feito um estudo semelhante hoje, "o quadro não seria muito diferente". O intervalo de alguns anos entre a amostra e a publicação agora tem a ver desde com desde a demanda de tempo para realização de experimentos ao preço e acessibilidade de alguns equipamentos e análises laboratoriais.

Mas a publicação referente aos casos de Ribeirão Preto é parte de um projeto maior, coordenado por Pitondo e com parcerias internacionais. O objetivo é estudar bactérias de origem hospitalar das cinco regiões do Brasil (representadas por Londrina, Brasília, Teresina, Manaus e Ribeirão Preto) e de países dos cinco continentes (Nova Zelândia, Canadá, Holanda, África do Sul e Índia).

Como se prevenir contra as bactérias multirresistentes?

Enquanto os cientistas correm contra o tempo e contra as armas das bactérias multirresistentes, o que as pessoas comuns podem fazer para entrar na luta contra estes microrganismos?

"Sem dúvida, a primeira preocupação é o uso indiscriminado de antibióticos. Embora hoje a venda de antibióticos seja rigorosamente controlada no Brasil, é preciso que a população se conscientize acerca do uso racional desses medicamentos", aponta Pitondo.

Especialistas recomendam também cuidados com a higiene e o saneamento, como no lavar as mãos com água e sabão e a troca de toalhas com regularidade. É preciso ainda ter atenção com ferimentos, evitando contato com eles e buscando sua desinfecção.

"Mas hoje a gente não pode se preocupar mais só com a resistência dentro do hospital, com o uso de antibióticos na comunidade... A gente usa antibióticos também na agricultura e na pecuária, o que também é um fator para que as bactérias se tornem resistente e causem infecções. A pressão vai vindo por todos os lados", alerta Assef.

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